Nelson Rodrigues, em 1958, na crônica Complexo de Vira-Latas, decifra de modo magistral a alma e a psicológica coletiva do brasileiro.
A crônica, redigida oito anos depois da fatídica derrota da seleção brasileira de futebol para o Uruguai, em pleno Maracanã, busca entender as causas de tamanho pessimismo e decadência moral; as razões de ainda insistirmos na nossa suposta inferioridade até naquilo que um dia juramos de pés juntos ser a maior paixão nacional: o futebol.
O nosso Anjo Pornográfico assim definiu o complexo de vira-latas: “por ‘de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: – porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.”
O saber oracular por trás do vira-latismo de Nelson Rodrigues cabe perfeitamente como metáfora para entendermos o funcionamento das instituições políticas brasileiras e do sistema político como um todo. Sim, entendermos aquilo que para muitos – e vou além: para a maioria de nós – é disfuncional, corrupto e ultrajante.
Este saber convencional vê o conjunto da política brasileira como um contínuo obstáculo às reformas e à participação. Nada funciona – continuam os pessimistas de plantão – à medida que o desenho constitucional bloqueia qualquer chance de reformas e de melhoras na sociedade.
E as críticas vão além. Do presidencialismo de coalizão à representação proporcional com lista aberta, do federalismo assimétrico ao modelo monocrático do STF, do regime republicano às políticas sociais.
Então, o que podemos fazer diante de tantos problemas? Recriar tudo e como num passe de mágica tudo passaria a funcionar perfeitamente?
Se a vida não é assim tampouco são as instituições políticas. Instituições políticas precisam de timing, de internalização das regras e adesão dos atores. Instituições fortes são necessariamente longevas, céticas, universalmente testadas e acordadas pelos principais jogadores.
Falhas institucionais/informacionais são normais e correntes no mundo das democracias. E dois exemplos recentes nos ajudam a entender tais problemas: o referendo para uma nova constituição no Chile e as últimas eleições presidenciais norte-americanas.
No primeiro caso, tínhamos no Chile um dos mais bem sucedidos modelos constitucionais do continente. Uma constituição que combinava um regime presidencialista multipartidário, rotatividade de poder entre diferentes blocos ideológicos – Chile foi governado por governos de esquerda e de direita – e uma aposta no liberalismo econômico.
E os problemas?
Existem e são bem óbvios: o silêncio quanto à agenda social. A carta magna chilena não contemplou políticas sociais universalistas nas áreas de saúde, educação, previdência, habitação etc., falha esta que poderia, no seu devido tempo, ser corrigida pelas elites políticas, afinal o governo da Concertación (coalizão de partidos de centro-esquerda) esteve no poder por vinte anos ininterruptos.
Já o segundo caso são as eleições norte-americanas. E aqui temos não só a mais fantástica experiência democrática do mundo como também um modelo constitucional originalmente forjado na colônia.
Gordon Wood, em A Revolução Americana, chega a afirmar que “durante a redação das novas constituições estaduais, os americanos começaram a institucionalizar tudo o que haviam aprendido com a experiência colonial e o recente embate com a Inglaterra. Embora soubessem que estabeleceriam repúblicas, não tinham uma ideia sobre a forma que os novos governos deveriam assumir. O objetivo central era impedir que o poder, investido em administradores ou governadores, ultrapassasse os limites da liberdade, que identificavam com o povo ou seus representantes no Poder Legislativo.”
Portanto, a constituição dos EUA de 1787 consolida um regime oligárquico, excludente e competitivo (sistema de checks and balances). Logo, se pensarmos bem, a experiência democrática norte-americana traz paradoxalmente características de um sistema pouco democrático.
O Brasil, diferentemente do Chile e dos EUA, prevê a adoção de políticas sociais universalistas sua carta constitucional; e desfruta de um eficaz sistema de eleitoral em que a população vota diretamente para os cargos em disputa e se tem um dos mais rápidos processos de apuração do mundo.
O Brasil não é um país perfeito e nunca será. Aliás, nenhum país do mundo o é. Todos os países apresentam graus variados de desenvolvimento institucional e as crises são inerentes aos sistemas políticos do mundo real.
Às vezes, o complexo de vira-latas nos cega para o que fizemos de bom e não nos permite ver que o mundo também tem seus problemas.