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A Odisseia de um Seringueiro – 1° Parte

A Odisseia de um Seringueiro – 1° Parte

De todos os animais, o homem é o único que é cruel. É o único que inflige dor pelo prazer de fazê-lo”. – Mark Twain (1835-1910), escritor e humorista estadunidense.

A ascensão econômica da Amazônia na virada do século XIX para o XX é, na maioria das vezes, exaltada de forma romântica, um tempo que deixou saudades naqueles que não o viveram, mas se imaginam nos mesmos espaços registrados em cartões-postais e fotografias do período. Por trás desse romantismo construído por uma historiografia tradicional e saudosista, existem trajetórias anônimas, ignoradas, daqueles que, embrenhados nos seringais, foram os verdadeiros construtores da grandeza da região. Um deles foi o piauiense José Moraes, seringueiro que, entre o Mato Grosso e o Amazonas, viu sua vida ser transformada em um verdadeiro Inferno. Ouvido pelos redatores do Jornal do Commercio em 11 de janeiro de 1914, teve sua história publicada na edição de 12 de janeiro com o título “Odysséa de um seringueiro – José Moraes relato-nos o seu martyrológio – Cortem a cabeça, a casa garante!”.

José Moraes, seringueiro natural do Piauí, trabalhava com seis fregueses seus no seringal São Gonçalo, da firma Asensi & Cia, do Mato Grosso, “proprietária de grandes seringais no rio Ji-Paraná, no limite entre Mato Grosso e Amazonas” (MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 261). No dia 29 de agosto de 1913, ele e seus parceiros de trabalho partiram do seringal em direção ao barracão da gerência do São Gonçalo com o objetivo de pedir mantimentos que estavam em falta há uma semana. Chegando ao local, Moraes deixou os demais seringueiros esperando enquanto entrava nas dependências do barracão. José Gomes Coelho, o gerente (O gerente fazia parte do corpo burocrático do seringal, que incluía o encarregado de depósitos e o guarda-livros. Entre os seus deveres estava o de zelar e vigiar a casa que dirigia e fazer com que todos produzissem e vivessem satisfeitos. Cf. TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009), o recebeu aos gritos, dizendo que o seringueiro tinha planos para assassiná-lo.

O seringueiro negou qualquer ideia do tipo. Queria apenas, urgentemente, mantimentos, pois há uma semana sobrevivia apenas à base de mingau. No entanto, lembrou que, se tinha alguma reclamação, ela se referia ao fato de que a pesagem da borracha que produzia não correspondia às suas expectativas. Novamente aos gritos, o gerente perguntou se ele achava que estava sendo enganado, no que também foi respondido no mesmo tom. Por um momento José Coelho se acalmou. Pediu de Moraes a relação de produtos, que consistia em carne, feijão, banha e tabaco. Produtos de primeira necessidade. O caixeiro Moura Ferro atendeu o seringueiro, entregando os víveres, mas em quantidades reduzidas.

Pegas as provisões, era hora de esperar até o dia seguinte para voltar. Na manhã do dia 1° de setembro, quando se preparava para partir com os demais, foi impedido pelo gerente, que lhe informara que a ponte que ligava a região tinha desabado, impossibilitando o retorno do grupo.

Ele disse que dava seu jeito, pois em sua casa não havia mais comida e, além disso, sua mulher estava grávida e perto de dar a luz. O grupo, agora chefiado pelo empregado José Barbosa, partiu. Chegaram ao lugar onde ficava a ponte. Depois de muita dificuldade, conseguiram atravessar o rio pelos lugares menos profundos. Percebendo que mesmo assim demoraria para chegar em casa, mandou um de seus amigos na frente com um pedaço de carne para ser entregue à sua família.

Às 17 horas o seringueiro José Moraes chegou em casa. Um de seus filhos que estava enfermo morreu em sua ausência. Enterrou-o no dia seguinte, uma segunda-feira. Abatido física e psicologicamente, não trabalhou. Na terça-feira distribuiu os alimentos e, acompanhado de sua mulher, partiu para o trabalho. Foi um dia calmo, aparentemente. No dia 04 de setembro o seringueiro se dirigiu a uma nova estrada para extrair o látex. Talhava uma seringueira quando, às 10 horas, foi surpreendido com um grito: – Não se mexa, cabra.

Olhando para trás, deparou-se com José Gomes Coelho, o gerente, acompanhado de 25 homens armados com rifles. Com um gesto seus capangas dispararam contra José Moraes, que caiu rolando por uma depressão do terreno. Novos disparos foram feitos. O seringueiro, atordoado, tentou se levantar duas vezes, mas não conseguiu.

José Gomes Coelho partiu com seus capangas para a casa da vítima. Dispararam várias vezes contra o humilde casebre de palha. De dentro da residência ouviam-se choros. Surgiram, apavoradas, tremendo de medo, três crianças, uma de nove anos, uma de oito e outra de um ano. Elas jogaram-se de joelhos no chão, de mãos postas, pedindo desculpas e implorando por suas vidas.

Fábio Augusto Carvalho

é historiador
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